Se alguém me perguntasse qual a questão mais importante deste mundo, entre as questões ligadas à área do pensar, à qual todos deveriam dar valor e atenção especial, eu diria que são as questões da interpretação de textos/falas/pensamentos, incluindo nisso a lógica e a capacidade de compreensão da linguagem. Por isso, sempre que vejo discussões ligadas a esse assunto, em que uma pessoa inteligente demonstra os pontos em que o outro erra na sua forma de pensar, eu paro e leio. É o tipo de coisa que tem potencial para trazer ensino profundo e aplicável em todas as esferas da vida. Coisas que se aplicadas no dia-a-dia economizam muitas brigas e desentendimentos. Como eu lamento que as pessoas em geral não dêem atenção a isso, preferindo se apegar a inflexibilidades mentais burras e estúpidas, formas invariadas de ver as coisas, repletas de estupidez ampla e irrestrita, simplesmente por não reparar nessa questão e por isso não ampliar os ângulos pelos quais um mesmo pensamento pode ser visto. Hoje eu topei com um texto postado no grupo Contra os Acadêmicos e achei muito bom. Não pelo assunto que originou a discussão mas pela análise feita. Uma análisa que uma pessoa inteligente deveria saber observar e transportar para a vida real, para aplicar a vários assuntos. O texto é de uma observação que Olavo de Carvalho faz a respeito da forma como Orlando Fedelli analisa uma determinada questão (que a mim não interessa aqui, pois meu foco é o raciocínio). Olavo mostra como ele pensa e em seguida explica que não é assim que se faz. Para quem souber transportar esse exercício para a análise de outros assuntos, em sua própria vida, as palavras abaixo trazem um ensinamento interessante. Eis o texto:
"COF 27: Sobre as acusações ao Olavo de ser gnóstico
"Outro dia alguém me mandou a gravação do Orlando Fedelli dizendo que eu sou um perigoso gnóstico etc. Pensei: “Meu Deus do céu, lá vem ele de novo!” Mas é muito simples compreender por que ele pensa assim. O que é o senhor Orlando Fedelli? Ele é um pregador, um transmissor da doutrina da Igreja, que é constituída das conclusões de longos debates procedidos nos concílios entre os grandes teólogos, santos, padres da igreja etc. Com o desencadeamento daquelas conclusões obteve-se a doutrina da Igreja, a qual, portanto, é feita todinha de conclusões. No livro Inquiridium, do Denziger, que é o resumo da doutrina católica, há milhares de conclusões: número 1, 2, 3, 4... Você não tem a menor ideia donde saiu aquilo e o rolo que foi para chegar a essas conclusões. Agora, se o Denziger não desse a doutrina católica, mas fosse contar a história de todas as discussões, então, meu filho, ele teria de pegar toda a patrística grega, latina, todas as obra de São Tomás de Aquino, Santa Teresa etc., e encadear tudo, o que daria uns cem mil volumes. Por isso, a doutrina da Igreja está só nas conclusões dessas discussões. O Fedelli é um cara que treinou para ensinar essa doutrina da Igreja e o faz muito bem, tem altos méritos nisso e eu jamais falaria mal dele por causa disso. Acho que é um católico sincero que está ensinando a doutrina da Igreja, mas o problema é que ele não tem capacidade para perceber a problemática filosófica da coisa; não pode perceber, pois está acostumado a raciocinar dentro do certo. Mas eu estou acostumado a transitar entre milhões de coisas que são duvidosas, nebulosas, e cujas conclusões eu não sei; esse é o meu treinamento. Como nós vamos lidar com coisas que não sabemos, isso é a filosofia. Por isso, quando o Fedelli se mete a ler textos filosóficos faz uma confusão dos diabos, porque ele interpreta cada frase como se fosse uma conclusão.
Imagine o seguinte: um cara que não conhecesse e fosse ler a Suma Teológica, na qual São Tomás de Aquino levanta uma pergunta e uma hipótese. Por exemplo: Jesus Cristo ressuscitou? Hipótese: parece que não, porque tem isto e mais aquilo; daí São Tomás explica e argumenta em favor de todas as coisas que são contra a hipótese da ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, fazendo depois o mesmo em favor dessa hipótese. Portanto, é uma leitura que deve ser feita aos poucos, linha por linha, e não o capítulo inteiro de uma vez. Só que esse cara não faz isso, faz como o Fedelli, pega um parágrafo lá do meio e diz: “Olhe aqui! São Tomás de Aquino está negando que Jesus Cristo ressuscitou!” Não, meu filho! Ele está no processo dialético da descoberta do negócio. Cada capítulo da Suma Teológica já é suficientemente complicado em si mesmo e o processo real pelo qual se chegou a isso foi muito mais complicado. Portanto, se você não tem o equipamento intelectual e humano necessário para lidar com todas essas ambigüidades e dificuldades do processo dialético, é melhor não se meter em questões filosóficas, afinal, ninguém é obrigado a ser filósofo.
Mas o que vai fazer o doutrinário, o pregador, o apologeta da religião, como o Fedelli? Vai ler o texto e verificar se está de acordo com a doutrina da Igreja ou não: se está, ele aprova; se não está, ele desaprova. É até bom que alguém faça isso para avisar as pessoas, como, por exemplo, o Fedelli fez com o René Guénon. Ele leu, disse que estava errado, que era gnóstico e, portanto, o condenou. Ótimo, mas o problema é o seguinte: como lidar filosoficamente com essas questões? Eu tenho de fazer minhas as hipóteses do Guenon, mesmo que ele esteja errado; eu tenho de verificar o fundamento da possibilidade do erro. Ou seja, eu tenho de dizer por que ele chegou ao erro, não basta simplesmente dizer que está errado. O Orlando Fedelli é como um médico que ao atender o paciente lhe diz que está doente. Ora, mas isso o doente já sabe, é por isso que ele foi ao médico! O que ele quer saber é o que precisamente está acontecendo com ele.
O processo de investigação filosófica implica uma série de meandros dialéticos, coisas dificílimas, no qual você está fazendo a abstração da questão do certo e errado finais. Está simplesmente acompanhando a experiência intelectual ou espiritual do outro e vendo todos os meandros dela. O Fedelli não tem essa capacidade, não estudou para fazer isso. Não tenho nada contra o que ele faz, acho maravilhoso. É um excelente pregador, grande defensor da Igreja, grande batalhador – Deus há de premiá-lo pelos seus esforços – e o acho uma pessoa boa, um homem de bom coração, mas não é um filósofo, não tem capacidade para lidar com isso. Quem precisa de uma certeza imediata e já vai direto no dogma da Igreja - lidando com cada sentença como se fosse uma conclusão e não uma etapa de uma investigação dialética - não vai entender nada; só vai entender se está ou não de acordo com a doutrina – e se não estiver se afastará disso. Sem dúvida, isso é uma atividade importante, mas se você não quer arriscar a sua mente, você não pode estudar filosofia. Pergunte ao padre o que é certo e errado, ele lhe responde e você segue.
Só que, procurando na patrística grega e latina, você encontrará uma infinidade de erros! E às vezes prosseguiram nesses erros por séculos, até que um Concílio ou um Papa fecharam a questão. Lendo só a doutrina final você terá um conjunto organizado das certezas que constituem a doutrina da Igreja, mas não entenderá qual é o problema e provavelmente não entenderá de quê a Igreja está falando. Ou seja, você terá um conhecimento suficiente para a sua prática religiosa, mas será uma coisa meramente pessoal. Se você quiser que isso tenha uma relevância cultural maior, será necessário passar por todas as etapas de dúvida, perplexidade etc., que é o que eu sempre me permiti fazer, porque esta é a minha vocação e eu gosto disso. Se o sujeito levanta um problema e me traz a solução final expressa em uma linguagem dogmática, eu não me conformo com isso, porque a linguagem dogmática não te explica nada. [1:50] É como usar uma calculadora: ela pode te dar o resultado certo, mas você não sabe fazer a conta; você obtém o resultado certo mas não aprendeu matemática. Se você quer só a doutrina da Igreja, você quer o resultado da conta; assim você não vai aprender matemática, meu filho!
O que o Orlando Fedelli fez? Ele aprendeu de cor todos os resultados certos e os repete – e alguém tem de fazer isso, é altamente meritório e precisa ser muito inteligente para fazê-lo. Por exemplo, quando ele vai lidar com René Guénon, o quê ele pode dizer? Pode condenar Guénon, chamá-lo de gnóstico maldito, dizer para as pessoas fugirem disso. Mas se ele não consegue dizer nada de substantivo é porque ele não compreende o que René Guénon está fazendo. Eu só conheço um sujeito em todo o universo que levantou uma objeção fundamental contra toda a doutrina do Guénon: eu mesmo! Levantei umas duas ou três das quais não há escapatória. Isso é falso mesmo, não tem jeito! Ele pode levantar do túmulo e discutir comigo que eu direi: aqui, não é que você errou, você está com treta! Eu tenho certeza absoluta disso, pois é facilmente demonstrável. Isso quer dizer que eu estou eternamente vacinado contra René Guénon. Posso aproveitar tudo de bom que ele tem, sem me contaminar pelo resto. Ou seja, o que eu aprendi dele me fortalece e aquela parte que pode ser perigosa, danosa, já está sob controle.
O Orlando Fedelli pode fazer isso? Não, não pode. Só o que ele pode é dizer: fujam! Porque o Guénon é um adversário perigoso e forte demais para ele, então ele mantém distância: “Isso é gnóstico, fujam disso!”. Mas eu não sou um amador, sou um profissional. Eu posso entrar dentro da toca do leão, mexer e saber o que estou fazendo. Eu estudei para isso. Não quero saber se o sujeito está certo ou errado – claro que no fim eu quero saber -, mas, ainda que seja um erro monstruoso, o que eu quero saber é como ele foi construído e qual a possibilidade de que o mesmo aconteça a mim ou a qualquer outra pessoa que se meta lá. Ou seja, qual é o fundamento, qual é a raiz que esse erro tem, na verdade? Discutir com o René Guénon não é coisa para criança, é coisa para um profissional – e eu sou um profissional neste campo e o Fedelli não é. Então, é este o problema.
Não estou zangado com o Fedelli, de maneira alguma. Ele pode achar que eu sou um gnóstico que está tudo bem, legal, o médico mandou não contrariar. Não vamos brigar por causa disso. Mas eu sei o seguinte: ele não está entendendo absolutamente nada e por isso o melhor seria ficar quieto num canto. Ao menos o Fedelli ainda tem a desculpa de fazer isso para defender a sua fé, mas e esse pessoal da USP que o faz para defender socialismo, defender porcaria ou a sua própria vaidade? Esses não têm desculpa, não, esses têm de apanhar!"
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